O cinema brasileiro tem se mostrado capaz de lançar filmes que não apenas atraem grandes públicos, mas também geram reflexões profundas sobre a nossa história. Um exemplo disso é o sucesso de bilheteira Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva.
Lançado há pouco tempo, o filme alcançou impressionantes números nas bilheteiras. Apenas entre 21 e 24 de novembro de 2024, arrecadou R$ 8,9 milhões e atraindo 1,8 milhão de espectadores, segundo a Comscore. Esses números colocam a produção à frente de grandes lançamentos estrangeiros, como Wicked, que arrecadou R$ 7,8 milhões no mesmo período. E Gladiador 2, que faturou menos ainda para a expectativa gerada pelos seus produtores.
No entanto, o êxito de Ainda Estou Aqui não se resume apenas aos números. O filme, que marca o retorno de Salles às telonas, tem feito o público refletir sobre o impacto da ditadura militar brasileira na vida de uma família de classe média durante os anos 1960 e 70. Fernanda Montenegro, consagrada atriz que foi indicada ao Oscar por sua atuação em Central do Brasil (1998), também de Salles, volta às telas, agora ao lado da filha Fernanda Torres. A presença das duas grandes atrizes, aliada à direção do brilhanteSalles, reforça o poder emocional e histórico da narrativa.
Este não é o único sucesso de Walter Salles. Em 1998, o diretor alcançou uma das maiores bilheteiras da história do cinema brasileiro com Central do Brasil e, mais tarde,em 2004, com Diários de Motocicleta, baseado nas memórias de Ernesto "Che" Guevara, que, em sua jornada pela América Latina, viveu experiências que o transformaram em um dos maiores ícones da história do século XX. A produção obteve mais de US$ 54 milhões em bilheteiras — o equivalente a cerca de R$ 324 milhões na cotação atual. A obra, produção norte-americana, também baseada em memórias e viagens, ajudou Salles a consolidar sua carreira internacional.
O que torna Ainda Estou Aqui tão relevante não é apenas o sucesso nas bilheteiras ou o valor estético. A força do filme está em como ele aborda um período doloroso da nossa história — a ditadura militar. O longa narra o cotidiano de uma família de classe média brasileira de vida pacata e amorosa. No entanto, a rotina dos Paiva é virada de cabeça para baixo quando o Golpe de 1964 toma o País e um ódio ideológico destruidor começa a corroer a vida dos brasileiros. O filme mostra, com profundidade, entre o delicado e o violento, como esse ódio se infiltra nas relações pessoais e políticas, transformando o dia a dia de todos em um campo de batalha, onde o amor é desfigurado pela violência política.
Walter Salles, um dos cineastas mais comprometidos com as questões sociais e históricas, faz uma escolha importante ao trazer à tona um tema tão oportuno em um momento de intensas polarizações políticas no Brasil. O que está em jogo no filme não éapenas a verossímil reconstrução de um passado distante, mas acima de tudo uma advertência sobre os perigos de ignorar os erros históricos. Ainda mais na frágil democracia que vivemos. A narrativa é construída com uma grande dose de humanidade, sem cair na tentação de um marketing ideológico ou de uma ação maniqueísta. Em vez disso, o filme oferece uma visão honesta do que o ódio político pode causar, destruindo não apenas famílias, mas a própria essência de uma sociedade civilizada. Salles equilibra razão e emoção revelando a alma de cada personagem diante da barbárie.
Em um país como o Brasil, onde as discussões sobre o regime militar ainda são um tema quente e controverso, o filme provoca uma reflexão fundamental para as gerações mais jovens, que não vivenciaram o impacto direto da ditadura, mas enfrentam as consequências de um ambiente político contaminado por ela. A reflexão sobre o que aconteceu entre 1964 e 1985 não é só uma lição do passado, mas um alerta para o futuro.
Ainda Estou Aqui não apenas remonta os horrores da ditadura militar, mas também acende uma luz amarela quanto ao perigo de que uma nova onda de ódio ideológico possa repetir 1964, afetando a política e as relações sociais do Brasil.
Ao retratar as consequências de um golpe e as tensões de uma época de repressão, o filme revela ao público o que move ações antidemocráticas. O ressentimento gerado por um ato contra a liberdade não apenas destrói instituições políticas e sociais, mas também abala os vínculos familiares e a estrutura de convivência civilizada. O enredo, portanto, é não só um olhar sobre a violência política do passado, mas também um convite à conscientização de que o ódio ideológico nunca foi uma solução para os problemas de um povo.
Ainda Estou Aqui é um filme que agrada pela história que se tornou um roteiro emocionante, com qualidade técnica e atuações brilhantes de seu elenco sob direção inspirada. E vai muito além. Cumpre um papel vital na formação do pensamento crítico da sociedade. Em tempos em que alguns defendem anistia aos novos golpistas, o filme de Walter Salles traz à tona a cruel realidade de um período da história brasileira que ressoa com força atualmente. Ao contar a história de uma família destruída sem sentido, Ainda Estou Aqui nos ensina uma lição crucial: devemos estar atentos e alertas para que os erros do passado não se repitam, e para que possamos preservar a nossa capacidade de amar e dialogar, mesmo em tempos de turbulência política.
Que o filme continue a provocar reflexões e discussões que ajudem a construir um futuro mais consciente e livre de ódio.
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