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Brasil

COLUNA DO RICARDO VIVEIROS

Publicado

em

Vida severina

O Brasil tem uma das culturas mais interessantes do mundo, com criativos artistas em diferentes áreas, da pintura à literatura, passando pelo teatro, cinema, dança, arquitetura, música, fotografia, teatro, escultura.

Somos um povo conhecido e reconhecido, em nível internacional, pela nossa arte múltipla e rica, sempre inovadora.

País que se libertou da colonização, em constante busca de crescimento, a alma do seu povo registra um toque de miscigenação que, para alguns, parece ruim e, para outros, bom.

Parcela mais consciente da nossa intelectualidade, entretanto, entende que a arte tem um compromisso sócio-político.

E daí surge um responsável questionamento dos problemas brasileiros. 

Nessa vertente, encontramos alguns dos nossos melhores criadores com trabalhos magníficos.

Entre os poetas, por exemplo, está João Cabral de Melo Neto, que em 2020, completou 100 anos.

Talvez, o mais importante nome da poesia no Pós-Modernismo, com um trabalho de alta qualidade e que foge aos temas subjetivos.

Sua obra obedece a uma rígida disciplina criativa, tem um compromisso com a forma e o conteúdo contempla a dura realidade deste País.

João Cabral nasceu em Pernambuco, no início de 1920, e ainda jovem mudou-se para o Rio de Janeiro.

Fez carreira na Diplomacia, chegando a embaixador. Escreveu livros de grande sucesso aqui e no Exterior, foi perseguido por ditaduras e, nos importantes cargos que ocupou na vida pública, nunca transigiu com suas convicções éticas e o respeito aos legítimos interesses do Brasil. 

Severino José Cavalcanti Ferreira também nasceu em Pernambuco, uma década depois do poeta. Em pleno golpe militar de 1964, elegeu-se prefeito do município de João Alfredo, pela União Democrática Nacional (UDN), partido que apoiara a derrubada do governo constitucional.

Sem instrução e sem cultura, inspirado no coronelismo, Severino cumpriu trajetória política construída sobre bases apenas demagógicas.

Em 1968, no auge da repressão dos militares no poder, João Cabral é eleito para a Academia Brasileira de Letras, um reconhecimento pelo conjunto de sua obra e uma demonstração de independência política da ABL, ao escolher um nome de esquerda.

Dois anos antes, Chico Buarque de Holanda havia transformado em espetáculo musical de grande sucesso uma das mais significativas obras de João Cabral, o auto de Natal: Morte e vida severina.

O poema mostra a saga dos retirantes nordestinos.

Gente simples e boa, que tenta vencer seu triste destino de miséria sob anos de seca e descaso governamental.

No mesmo ano de 1968, Severino Cavalcanti exercia seu primeiro mandato de deputado estadual, ainda em Pernambuco, pela Arena, partido de sustentação aos militares.

E seguiu se reelegendo até que, em 1975, chegou a ser vice-líder da agremiação política na Assembleia.

Nesse mesmo ano, João Cabral lançava o livro Museu de tudo, premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

O poeta era publicado em vários países do mundo; a obra foi um êxito até na exigente França.

Em 1978, por influência do seu amigo Paulo Maluf – que o auxiliou financeiramente em campanhas eleitorais –, Severino recebe, sem justa razão, a medalha da Soberana Ordem dos Cavaleiros de São Paulo, no Pátio do Colégio, terreno sagrado e símbolo da fundação da capital paulista.

João Cabral, nos anos seguintes, recebe, por seus inegáveis méritos, os prêmios “Camões”, em Portugal, e “Neustadt”, na Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos – o primeiro brasileiro a merecer a láurea.

Enquanto isso, no Brasil, Severino praticava atos políticos marcados pelo radicalismo e pelo preconceito.

Em 1980, denunciou o padre Vito Miracapillo, um religioso italiano que, diante da barbárie praticada pela ditadura militar, torturando e matando dissidentes do regime, recusou-se a celebrar missa nas comemorações do 7 de Setembro.

O padre foi expulso do Brasil, onde realizava importante trabalho de catequese e de solidariedade aos necessitados.

Aos seus usos e costumes, iludindo o eleitorado mais simples, Severino chega em 1995 à Câmara Federal.

Dessa vez, pelo fisiológico Partido da Frente Liberal (PFL).

A atuação parlamentar, do agora federal, Severino Cavalcanti, foi pontuada por fatos no mínimo cômicos, se não fossem trágicos… Perseguição a homossexuais; absurdas defesas de aumento de salários e legitimidade na contratação de parentes dos deputados para o serviço público; acordos políticos com base em vantagens pessoais; e, para fechar a lista com chave de ouro, a defesa de uma punição branda para os parlamentares corruptos.

Como dizem os talentosos irmãos chargistas, Paulo e Chico Caruso, no refrão de divertida e oportuna crítica musical: “Severino Cavalcanti, rei do lero-lero; Severino Cavalcanti o papa do baixo clero”.

Ou seja, para ser líder de um grupo sem nenhuma expressão, só sendo alguém da estatura desse mesmo contingente.

Numa articulação política sem medir consequências, unem-se partidos contra o então considerado “domínio petista”.

E, irresponsavelmente, o despreparado e corrupto Severino é eleito presidente da Câmara dos Deputados, o terceiro homem na hierarquia governamental do País.

Mas, como dizia o falso guru Fernando Collor, “o tempo é o senhor da razão”.

E foi mesmo, primeiro com ele próprio, Collor, e, mais tarde, com Severino.

Neste caso, o tempo nem perdeu tempo… Agiu rápido. Severino foi flagrado com a mão em ladroagem pequena para quem é igualmente pequeno, de lá mesmo, do “baixo clero”.

Cobrava propina do concessionário da lanchonete da Câmara Federal.

E o poeta João Cabral?

Pergunta o atento leitor.

João Cabral morreu no final dos anos 1990.

Escapou de ver um de seus retratados, que deixou de ser um herói nordestino como aquele do seu antológico poema, para ter outra espécie de fim.

Severino, ao renunciar aos mandatos de presidente da Câmara e de deputado federal, suicidou-se politicamente diante das denúncias que não conseguiu desmentir – porque eram verdadeiras.

Morreu em 2020, no ostracismo político. 

Neste momento da vida pública do Brasil, nas campanhas às prefeituras que se iniciaram, observamos mais Severinos do que Joões.

A história ensina muito, as pessoas aprendem pouco…

Ricardo Viveiros, jornalista, professor e escritor, é doutor em Educação, Arte e História da Cultura (Universidade Presbiteriana Mackenzie); autor, dentre outros livros, de "A vila que descobriu o Brasil", "Justiça seja feita" e "Memórias de um tempo obscuro". Apresenta o programa “Brasil, mostra a tua cara!” às sexta-feiras, 23 horas, na TV Cultura.