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COLUNA DO RICARDO VIVEIROS

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Entre o céu e a terra

Há 18 anos morreu, em 27 de agosto, Dom Luciano Mendes de Almeida, bispo jesuíta.

Sempre o conheci.

Primeiro de sobrenome, porque nossas famílias são cariocas e tiveram presença marcante no Direito, na Igreja Católica e na Literatura.

Depois, porque estudamos no respeitado Colégio Santo Inácio, em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Ele, 19 anos mais velho do que eu, era um exemplo citado com frequência pelos mestres aos alunos que passavam pelos mesmos bancos do tradicional prédio da Rua São Clemente.

Dom Luciano foi primeiro aluno durante toda a vida escolar e universitária.

Por fim, porque o destino tratou de nos aproximar nos anos duros após o golpe militar de 1968, quando eu, ainda jovem, tornei-me ativista político e ele era um ser especial caminhando firme pelas ruas, presídios, quartéis, tentando proteger e defender os que resistiam e lutavam pela legalidade constitucional, contra a censura, pela democracia, contra a opressão, pela liberdade. Sempre muito discreto.

Dom Luciano não era um padre, não foi um bispo, muito menos chegou a cardeal tolhido pela intolerância da ala conservadora da Igreja Católica, que nunca o compreendeu e o perseguiu, muitas vezes contando com o apoio de influentes governantes.

Dom Luciano foi um anjo.

E na mais absoluta expressão da palavra.

Um dos mais claros exemplos de vocação religiosa cristã, ele transcendeu os limites da fé e alcançou um plano muito além da doutrina e da crença.

No final dos anos 1980, quando eleito pela primeira vez para presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a entidade maior da Igreja Católica no País, Dom Luciano disse à imprensa qual era sua ideia para o exercício do cargo: 

Peço a Deus atuar na conversão dos homens, do egoísmo ao verdadeiro amor, sem conformismo e sem a impaciência dos violentos, para que as estruturas e a convivência humana correspondam cada vez mais à dignidade dos filhos de Deus.

Entre tantos repórteres presentes à entrevista coletiva, talvez eu fosse um dos poucos a entender, de maneira ampla, a imensa verdade que estava nessas suas palavras ditas muito mais como quem reza do que como quem discursa.

Um linguajar de quem pratica o exemplo de Cristo e é arauto da mensagem principal da Bíblia: o amor ao próximo – no caso de Dom Luciano, muito além do que a si mesmo. 

Anos antes, em 1981, pude acompanhar de perto a atuação do anjo na periferia de São Paulo, na sofrida Zona Leste, quando foi bispo auxiliar de Dom Paulo Evaristo Arns.

Dom Luciano sempre dormia e comia pouco.

Dom Paulo me apresentou Dom Luciano, um ser de corpo alquebrado, voz mansa e sorriso doce. No começo, ele parecia-me estranho.

Nas reuniões com as comunidades de base, em meio às discussões mais acaloradas, permanecia de olhos fechados, com o braço apoiado na mesa e a mão segurando a cabeça.

Muitas vezes, até dava uma ressonada.

De repente, abria os olhos e lançava um olhar profundo, pedia a palavra e comentava com absoluta precisão e oportunidade todos os assuntos tratados enquanto estivera “dormindo”.

O importante é que Dom Luciano foi sempre firme na defesa de suas ideias, entre as quais emergia com toda a força a defesa dos direitos humanos, da ética e da responsabilidade social.

Foi um dos mais severos críticos da opressão, sob qualquer forma.

Uma vez, no cinturão pobre da cidade de São Paulo, Dom Luciano e alguns repórteres, entre os quais eu me encontrava, foram alvos de pedradas dos moradores do entorno de uma área invadida e transformada numa espécie de favela.

Os mais “ricos” não queriam ser contaminados pelos vizinhos mais “pobres”.

Dom Luciano, com absoluta calma e sob a autoridade da fé, soube acalmar os revoltosos, a Polícia Militar, as vítimas e, com todos reunidos à sua volta, num misto de diplomata, sábio e anjo, falou sobre intransigência e respeito.

Resolveu o problema.

Ele foi o evangelho materializado.

Quando na Pastoral do Menor, Dom Luciano varou noites frias e úmidas de inverno percorrendo as ruas em busca de recolher e abrigar crianças e adolescentes abandonados à própria sorte.

Distribuiu amor e amealhou enfermidades.

Foi vítima de um violento acidente automobilístico que lhe deixou graves sequelas, mais tarde contraiu hepatite C e, por fim, não resistiu a um câncer fulminante.

Um santo guerreiro.

No período em que foi arcebispo de Mariana (MG), era comum ao visitar o palácio da arquidiocese encontrar moradores de rua dormindo, comendo, bebendo um café coado pelo próprio dom Luciano.

Uma de suas frases: “Em que posso servir?”.

Ele fazia questão de imitar a misericórdia e o amor do Pastor, acolhendo e cuidando dos humildes que tratava como irmãos.

Para sempre guardarei na memória quando Dom Luciano, olhando firme nos olhos de um colega, perguntou: “Soube que você é ateu, é verdade?”.

Diante da resposta afirmativa de que o jornalista não acreditava em Deus, com um sorriso, disse: “Não faz mal, Ele acredita em você!”.

Como dizia Madre Tereza de Calcutá, repetindo Confúcio: “A palavra convence, o exemplo arrasta”.

Dom Luciano Mendes de Almeida encontra-se em processo de beatificação pelo Vaticano, passo inicial para sua canonização.

Seu exemplo é eterno.

Ricardo Viveiros, jornalista, professor e escritor, é doutor em Educação, Arte e História da Cultura (Universidade Presbiteriana Mackenzie); autor, dentre outros livros, de "A vila que descobriu o Brasil", "Justiça seja feita" e "Memórias de um tempo obscuro". Apresenta o programa “Brasil, mostra a tua cara!” às sexta-feiras, 23 horas, na TV Cultura.